A
paciência, segundo a revista Universo Maçônico, significa equilíbrio e o controle do dualismo, o freio para o
instinto, o fruto da meditação, o caminho da sabedoria. A paciência conduz à
perseverança, e esta à conquista do alvo planejado.
Com a paciência e a
boa-vontade, evoluímos mais rapidamente. Necessário estudar a paciência para observar
cada um de nós à frente da própria conduta nas relações humanas e no reduto
doméstico.
Sabemos compreender habitualmente os assaltos morais de inimigos ocultos,
obrigando-nos a refletir, quanto à melhor forma de auxilia-los para que se
renovem construtivamente em seus pontos de vista, e, em muitos casos,
esbravejamos contra o desagrado de uma criança que a doença incomoda.
Aprendemos a suportar, com serenidade e entendimento, prejuízos enormes da
parte dos amigos, nos quais depositávamos confiança e carinho, buscando
encontrar o modo mais seguro de ajudá-los para o resgate preciso, e, muitas
vezes, condenamos asperamente pequenas despesas naturais de entes queridos,
credores insofismáveis de nosso reconhecimento e ternura.
A tolerância para com superiores e subalternos, colegas e associados,
familiares e amigos íntimos é realmente o recurso da vida em que se nos erige o
metro do burilamento moral. Isso porque a beneficência se mostre sempre sublime
e respeitável, em todas as suas manifestações e atributos, é sempre muito mais
fácil colaborar em campanhas públicas em auxílio da Humanidade ou prestigiar
pessoas com as quais não estejamos ligados por vínculos de compromisso e
obrigação, que tolerar com calma e compreensão os contratempos mínimos e as
diminutas humilhações no ambiente individual.
Paciência, por isso mesmo, em sua luminosa autenticidade há de ser aprendida,
sentida, sofrida, exercitada e consolidada junto daqueles que nos povoam as
áreas do dia-a-dia, se quisermos esculpi-la por realização imorredoura no mundo
da própria alma.
Proclamemos e ensinemos quanto nos seja possível os méritos da paciência; no
entanto, examinemos as próprias reações da experiência íntima à frente de
quantos nos compartilham a luta cotidiana, na condição de sócios da parentela e
do trabalho, do ideal e das tarefas de cada dia, e perguntemos com sinceridade a
nós próprios se estamos usando de paciência para com eles e para com todos os
outros companheiros da Humanidade, assim como estamos sendo incessantemente
tolerados e amparados pela paciência de Deus.
Eis uma estória,
presente na revista “Reformador”, de 1955. Enfatizando o poder da boa-vontade e paciência.
O cão de Ali Bahadia
Ali Bahadian não era propriamente um mau. No entanto, tomava, às vezes,
estranhas atitudes, das quais frequentemente se arrependia. Temperamento
impulsivo, meio estourado, era, porém, fácil de acomodar, passados os primeiros
instantes de irritação.
Uma noite, ele começou a ouvir vozes. Voltou-se para o lado de onde partiam os
sons e nada viu. Pôs-se inquieto e custou a conciliar o sono. Levou alguns dias
preocupado, acabando por esquecer o incidente. Quando, dias após, empreendeu
pequena viagem, as vozes voltaram. Ia Ali Bahadian batendo o pó da estrada,
mais ou menos satisfeito. Amanheceu na aldeia de Banjalir. Acercou-se da margem
de pequeno rio para comer alguma coisa. Nesse instante, aproximou-se, agitando
a cauda, um cão sujo e faminto, que não tirou os olhos da boca de Ali.
Enervado, o rapaz xingou-o, desferindo lhe um pontapé.
- Que queres, diabo ?! Vai embora!
O
pobre animal correu, ganindo, rabo entre pernas, mas não ficou muito longe. A
fome era muito mais forte que o medo. De lá onde estava, esticou um olhar
triste, misto de ternura e humildade, que não comoveu Ali Bahadian. Mais
zangado ainda, este o escorraçou, atirando-lhe uma pedra. Assustado, o cão
desapareceu por trás de uns arbustos.
*
Concluída a frugal refeição, Ali curvou-se sobre o rio para lavar as mãos.
Fê-lo tão desastradamente que o fêz (1) escorregou-lhe da cabeça
e tombou dentro d’água. Ali Bahadian lembrou-se do cachorro. Assobiou,
chamando-o, e quando ele apareceu instigou-o a correr para o rio. O animal,
entretanto, reconhecendo-o, fugiu, ligeiro, receando, talvez, castigo.
- Peste! - vociferou Bahadian. -. Vem cá, animal! Por tua causa vou perder meu
fêz!
Nesse instante, teve a impressão de que alguém lhe mussitava ao ouvido:
- A culpa é tua e não dele, Ali. Se houvesses demonstrado generosidade, o cão
estaria a teu lado, confiante, e certamente atenderia sem relutância à tua
vontade. Em vez de ajudá-lo, escorraçaste-o. Agora estás recebendo o prêmio da
tua má ação, porque não pode colher flores quem semeia pedras.
Ali Bahadian, não vendo ninguém em seu redor,
estremeceu, espantado. Eram as vozes que retornavam! Sentiu percorrer lhe o
corpo um arrepio gelado e disse consigo mesmo:
- Estou ouvindo "coisas"... Sempre a mesma lengalenga. Eu não
acredito nisso...
No mesmo instante, como se estivesse dialogando com um ser invisível, ouviu
ainda mais nitidamente:
- Acreditas, sim... Irás acreditar, porque ninguém pode fugir à realidade...
Verás ainda...
Alarmado, Ali conseguiu uma vara e "pescou” o fêz que o rio já ia levando.
A "pescaria" fora difícil, mas, afinal, ele podia, agora, recomeçar a
viagem. O Sol queimava a terra e tornava intolerável o calor. Suado e cansado,
Ali Bahadian estava com insuportável mau humor. De quando em quando soltava uma
imprecação, amaldiçoando o pobre cachorro. Após uma curva, avistou um
homem que tentava erguer até à lombada dum burro pesado fardo que se
desprendera das cordas. A tarefa era demasiada para uma só pessoa. Por isto,
quando ele viu Ali, sorriu de contentamento, cheio de esperança:
- Amigo: foi Alá quem te enviou a mim! Alá esteja contigo! Queres dar-me uma
"mãozinha? A carga é pesada e sozinho não consigo repo-la em cima do
burro...
- Ah! Quisera eu ter forças para ajudar-te. Não posso, porém. Estou fatigado e
tenho ainda que andar muito...
- Mas, com um pouco de boa vontade, meu amigo, será possível, sem que te
prejudiques, levantar o fardo. Eu farei mais força e tu apenas darás um
empurrão para a carga subir...
- Não! Se soubesses como estou cansado, não insistirias...
E foi andando, ainda mais zangado.
Enxugando o suor que corria sem cessar do rosto queimado pelo Sol, o
desconhecido apenas disse:
- Compreendo, compreendo... Não podes... Está bem. Alá há de me dar
forças para fazer o que almejo, já que me negas o auxílio que poderias
prestar-me, se tivesses boa vontade.
Ali Bahadian não deu atenção, resmungando:
- Ora, ora! Quase perdi meu fêz, cansei-me deste
jeito e ainda vem esse homem falar em boa vontade! Terei cara de idiota,
porventura?
Andou por todo o resto da tarde. Ao anoitecer, recostou-se a uma grande pedra,
debaixo de copada árvore e adormeceu, despertando quando o Sol já fazia sentir
os seus efeitos. Abriu o alforje que trazia às costas e pôs-se a comer figos
secos. Ao ouvir alguém cantarolar, levantou a cabeça e avistou o homem do
burro. Esforçando-se por ser amável,
Ali Bahadian saudou-o:
- Benvindo sejas, em nome de Alá!
- E tu também, meu amigo, ganha as bênçãos do Todo Poderoso, porque sem Ele
nada valemos - respondeu o desconhecido.
- Tenho aqui algumas moedas - tornou Ali e serão tuas se me permitires viajar
nesse burro.
Não aguento caminhar nesta dura estrada, sob sol tão forte.
- Alá te ilumine o pensamento, irmão! A única moeda que realmente tem curso em
nossa vida é a boa-vontade. Poderás vir, mas não me precisas pagar nada.
Perplexo com a generosidade do desconhecido, Ali Bahadian se agastou:
- Pensas que estou aqui para te pedir favores? Vai embora com teu burro. Falas
em boa-vontade, porém o que queres é humilhar-me. Não preciso de boa-vontade,
ouviste?
- Precisas mais do que pensas, Ali. Boa-vontade é moeda que rende muito, dá
sempre troco, garante juros certos...
A voz partia do lado oposto. Ali Bahadian voltou a cabeça, surpreso, e não viu
vivalma. Não sabia explicar o que com ele acontecia. O homem e o burro já
haviam sumido na estrada cheia de voltas. Assustado, Ali pôs-se a andar
apressadamente, monologando:
- Será um djim (2) me está perseguindo?
No mesmo instante, a voz se manifestou, forte:
- Acompanho-te porque gosto de ti, Não és mau, embora gostes de parecer que o
és. Precisas criar juízo, rapaz. Amabilidade não faz mal a quem a usa.
Generosidade é ponte que nos faz atravessar muitos valões perigosos. Cultiva a
boa-vontade. Sempre que puderes, ajuda a alguém, mesmo que ninguém te ajude.
Acabarás por ter amigos e, quem tem amigos, nunca está só, Ali. Faze uma
experiência na primeira oportunidade que tiveres. Tenta...
Outra vez "a voz", aquela voz que lhe penetrava o íntimo. Nervoso,
Ali Bahadian perdeu a noção das coisas e saiu correndo, sem sentir a fadiga,
porque o temor era maior do que o cansaço. Quando deu acordo de si, estava
novamente ao lado do homem do burro. Ofegante, pálido, quase sem poder falar,
Ali se apoiou no animal, que caminhava a passo lento. Nesse instante, as cordas
que amarravam o fardo às costas do solípede rebentaram de novo e a carga veio
estrepitosamente ao chão. O pobre homem ficou desapontado. Como iria
transportá-la, se não tinha cordas sobressalentes, que lhe permitissem prender
o fardo ao animal?
Ali Bahadian lembrou-se, então, do conselho de "a voz" e,
mostrando-se solícito, ofereceu:
- Olha: tenho comigo uma corda fina, de cânhamo. É forte e talvez possa
servir... Antes que o homem, admirado da bela ação, dissesse algo, Ali
Bahadian emendou as pontas rebentadas, experimentando se as emendas estavam
seguras. Depois, ajudado pelo companheiro, pôs novamente a carga na lombada do
burro. Os dois sorriram de satisfação, depois disto. Recomeçada a marcha, Ali
se entregou a animada conversa, talvez receoso de ficar só e ser assediado pela
"voz". Em dado momento, o homem lhe propôs:
- Vieste a mim pela mão do Profeta, amigo.
Se não viesses, eu ainda estaria parado na estrada, nesta soalheira terrível.
Alá te cubra de flores, irmão, por tão boa-vontade!
Estremeceu Ali Bahadian ao ouvir falar em "boa-vontade". Lembrou-se
imediatamente da voz. Nem respondeu ao companheiro, tão atarantado ficou. Sem
lhe apreender a perturbação, o homem prosseguiu:
- Sou Aziz Abud Sizza, de AI-Farid, para onde vou. E tu?
- Eu? Ali Bahadian, de Katarucha. Também vou para AI-Farid... - esclareceu Ali.
E puseram-se os dois a
conversar animadamente.
- Para que não te canses muito, Ali, monta no burro até à próxima pousada. Bem
o mereces por tua boa vontade.
Ali Bahadian exultava de íntima alegria. Nunca se vira tão bem tratado, nunca
sentira alguém demonstrar satisfação em o ter por companhia. Era como se
houvesse alcançado o Paraíso. Não esperou que Aziz Abud Sizza repetisse a
invitação. Ajeitou-se diante do fardo e lá se foram os três, estrada afora,
como velhos amigos. O burro parecia igualmente feliz, porque, enquanto
caminhava, movimentava a cauda de um para outro lado.
Ali bendizia a bondade de Deus:
- Abençoado seja Teu nome, Alá! Nunca pensei que alguém pudesse ajudar-me! -
pensou.
- Não te dizia eu, Ali? - sussurrou-lhe a voz misteriosa. - Cultiva a
boa-vontade, a tolerância, a amizade com os teus semelhantes, procura ser bom,
evita ser mau. Acabarás por ter amigos e quem tem amigos, nunca está só.
Tiveste o prêmio da tua boa ação.
Embora empalidecendo, Ali Bahadian não denotou seu sobressalto. Tinha o coração
aos pulos, mas, desta vez, sentira indefinível bem-estar. Então, a voz seria
mesmo verdade? Não havia dúvida alguma, tanto que lhe predissera bons momentos
e ele estava fruindo realmente uma situação que não previra.
Em AI-Farid, onde pernoitava, Ali Bahadian despertou em sobressalto. Ouvira
insólito ruído junto à porta da alcova. Abriu os olhos, atento, mas tudo eram
trevas. Lepidamente, ergueu-se e acendeu a lâmpada de óleo. Nada viu de
anormal. Supôs haver sonhado. Ia deitar-se de novo quando a chama da lâmpada
começou a minguar, até desaparecer totalmente. Ali reergueu-se, tornou a
acender a lâmpada, que tinha óleo suficiente para toda a noite. Não queria
ficar às escuras... Deitou-se outra vez. Repetiu-se a cena: a chama foi
diminuindo devagarinho até sumir. Desta vez, entretanto quarto não ficou na
escuridão, porque, imediatamente, se iluminou por igual, como se o Sol lá
houvesse nascido. Ali Bahadian sentou-se no leito, apavorado. Que seria aquilo?
Através da porta fechada começou, então, a surgir uma luz azulada e de dentro
dela saiu um homem alto, moreno, de turbante amarelo. Seus olhos negros e vivos
denotavam aguda inteligência. Parecia um dervixe. (3) Aproximando o
rosto da face de Ali, indagou:
- Sabes quem sou?
Tartamudeando, o rapaz
respondeu:
- Não... não sei...
- Sou "a voz". .. A voz que tens ouvido frequentemente. Depois da boa
ação que praticaste, resolvi apresentar-me a ti. Não te assustes. Sou teu
amigo, há muito, muito tempo... se andares direito, continuarei a sê-lo. Se
entortares, o resto será contigo.
Ali Bahadian suava frio e tremia como caniços em vendaval. Supunha estar sendo
dominado por terrível pesadelo. Mas, nada disto: achava-se até bem desperto.
Pretendeu gritar, mas não pôde. Olhos arregalados, sossegou um pouco quando
compreendeu que "a voz" lhe sorria com amabilidade, despedindo-se.
Depois que a estranha visão desapareceu, Ali Bahadian se colou à parede, certo
de que iria morrer de susto. O coração batia descompassadamente e o ar lhe
faltava. Porém, nada lhe sucedeu de ruim. "A voz", agora num tom
quase paternal, lhe disse:
- Se todos os homens fossem um pouco mais pacientes, se soubessem ter
tolerância em face de certas atitudes de seus semelhantes, se não se mostrassem
irritados, mas serenos, muita coisa que parece difícil se tornaria fácil e
estabeleceria a compreensão que falta na vida de relação. Um dia, Ali, desceu à
Terra um grande Espírito. Isa (4) veio dar aos homens as regras do
bom viver e da felicidade. Todos os seus mandamentos podem ser resumidos num
só: "Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos façam." Se as
criaturas humanas se dispusessem a proceder assim, as condições desse mundo
seriam melhores. Tu tiveste um exemplo, Ali. Bastou que ajudasses aquele
desconhecido na estrada para que ele também te ajudasse. A vida tem de ser
vivida com espírito de reciprocidade e paciência. Nada somos isoladamente, mas
valemos muito, quando unidos pela compreensão. Tudo deve ser feito com
boa-vontade, porque tudo merece nossa simpatia, nosso amor: as criaturas
humanas, os animais, as pedras, as plantas, a terra, a água, o ar, tudo, enfim,
Ali Bahadian, porque é criação de Alá. Em certas ocasiões, devemos até abençoar
o mal, porque ele nos esclarece a jornada. Sem paciência e boa-vontade pouco se
consegue na vida. O homem que compreende as lições do Livro Sagrado, faz a
vontade do Profeta e se aproxima de Alá.
Ali
Bahadian ouvia as palavras da visão, sem se mexer. Mesmo que desejasse falar,
não teria ânimo, porque sofrera rude abalo. Entrementes, "a voz"
prosseguiu:
- Ser bom é obrigação de todos os filhos de Alá. A bondade não tem fórmulas nem
formas; pode ser demonstrada de muitas maneiras e em qualquer ocasião. Ninguém
vence com violência e aqueles que aparentam triunfos assim são verdadeiramente
derrotados, porque ele mesmo escreve no livro da vida o seu próprio destino. É
sempre inteligente ceder um pouco, todas as vezes que se fizer necessário. Sem
boa-vontade e esperança de um lado, será difícil encontrar boa-vontade e
esperança do outro. Simpatia é um passe livre para a boa compreensão. Mesmo que
não te compreendam, guarda a serenidade nos momentos difíceis. Com paciência e
tolerância acabarás vencendo, assim como a água, gota a gota, acaba por
perfurar o granito mais consistente. A questão está em saber ter paciência e
trabalhar, esperando. É preferível que te desapontes procurando ser bom e útil a
teus semelhantes, do que desapontares a alguém, mostrando-te duro e
imprestável. Todos nós apenas colhemos na medida do que semearmos. Portanto,
Ali Bahadian, tem juízo. Educa-te, porque a glória maior do homem não está na
riqueza nem nas posições que ocupa, mas na força interior que possui, na
capacidade de dominar-se a si mesmo.
Em seguida, a visão, tocando com a ponta dos dedos a testa, os lábios e o
coração, se despediu sorrindo. Atravessou a porta fechada, ante os olhos
atônitos de Ali, que se viu, imediatamente imerso em completa escuridão.
Reanimando-se, saltou do leito, acendeu a lâmpada de óleo, inquieto por se
encontrar sozinho.
- Só pode ter sido um pesadelo! - exclamou.
- Vou lá acreditar em fantasma? Eu? Só se eu não me chamasse Ali Bahadian. Sou
inteligente. Fui vítima de uma alucinação, apenas. E só acreditarei
"nisso" se tudo se repetir...
Mas nada se repetiu. Pelo menos naquela noite.
No dia imediato, depois de haver satisfeito os deveres que o haviam levado a
Al-Farid, Bahadian iniciou a viagem de retorno a Katarucha. Conseguira lugar
numa carreta, até a metade do caminho. Ao atingir a aldeia onde escorraçara o
cão, procurou a margem do rio, a fim de fazer ligeiro repasto. Lá encontrou,
esquelético, rondando os poucos transeuntes, na esperança de ganhar restos de
alimentos, o mesmíssimo cão sujo e infeliz. Ao ver o rapaz, para ele se
dirigiu. O primeiro impulso de Ali foi afugentá-lo, porém, no instante se
lembrou da visão e das vozes, na quais ele "não acreditava"... Tirou
um pedaço defumada carne do alforje e lançou-o ao cachorro, que inesperadamente
vivo e rápido, devorou-o sem tardança, para, a seguir, olhar para Ali, entre
agradecido e pedinchão.
- Queres mais, hem? Fiz-te a vontade e não estás satisfeito?
Como se compreendesse o que ouvia, o cão pôs as orelhas em pé e abanou a cauda.
Ali achou graça. Retirou do alforje um bolinho de farinha e entregou-o ao
animal, que se acercara mais confiante. Depois, alimentou-se e empreendeu a
jornada sem dar maior importância ao cachorro. Andou muito sendo surpreendido
por forte ventania, ao cair da tarde. Em dado instante, um golpe de vento
arrebatou-lhe o fêz, que caiu numa grota de acesso. Ali Bahadian tentou
apanhá-lo, infrutiferamente. Irritado, dando o fêz por perdido, pôs
o alforje às costas e foi procurar abrigo conveniente. Nesse ínterim, ouviu
latidos. Voltou-se e avistou o cão faminto que o acompanhara. Corria para ele
trazendo à boca o fêz. De momento a momento, como que brincando, punha o fêz no
chão, latia e corria em volta desse barrete. Ali, contente, apanhou o fêz e
alisou o pelo imundo do humilde cão, que se arriscara para o servir.
Deu-lhe o resto de carne defumada que trazia, afagando lhe um vez mais o lombo
ossudo. Depois desse incidente, Ali Bahadian recomeçou a viagem, chegando em
Katarucha já noite densa. Nem mais se lembrava do cão. Abriu a porta de casa,
entrou, e, antes acendesse a lâmpada, tudo se iluminou, tal sucedera em
AI-Farid. Ali correu para um canto do quarto, fechando os olhos. A visão se lhe
apresentou mais uma vez:
- Não te espantes, Ali. Já sabes que sou amigo. Aprendeste muita coisa. Olho
para o teu futuro e vejo... zafar qarib. (5) Precisas continuar
sim, melhorando sempre. Por mais zangado que estejas, por mais pressa que te
aflijas, não te irrites, não maltrates ninguém, muito menos os animais.
Paciência, tolerância e boa-vontade, Ali Bahadian, três gigantes que nos
decuplicam as forças, quando sabemos usá-las. Boa vontade é moeda de câmbio
forte, de juros certos. Ajuda sempre que puderes, não esperando recompensa.
Quando não deres ajuda, dirige uma prece a Alá, porque ele te dará
forças para suportares resignadamente as dificuldades. Conforma-te com as
injustiças, mas procura nunca ser injusto, porque, assim, os espinhos sairão de
teu caminho. Agora, vai lá fora: há uma surpresa para ti. Recebe-a com
paciência e boa-vontade, Ali Bahadian.
Mal a visão se diluiu através da parede, Ali correu a acender a lâmpada e
tornou à porta para ver a que se referia o fantasma. Qual não foi seu espanto
ao deparar com o cão, que o seguira humildemente e se deitara ao relento.
- Era isto! - exclamou, um tanto decepcionado. - Que vou fazer com este
cachorro aqui?!
Quis enxotar o pobre animal, mas seu subconsciente reagiu imediatamente. Ali
Bahadian volveu ao interior da casa e deitou-se, pensando como livrar-se da
companhia que lhe parecia incômoda. Ao despertar, na manhã seguinte, porém, era
bem diversa sua disposição de espírito. Ao vê-lo, o cão manifestou-lhe agrado e
Ali, bem humorado, decidiu:
- Só poderás ficar comigo se tomares um banho.
Foi o que fez. Depois da limpeza, o cachorro lhe parecia bonito, embora muito
maltratado pela fome. Ali Bahadian alimentou-o e, depois disto, o cão, dócil e
atento, distraiu-o bastante. Chegara ele a conclusão de que, afinal, tinha
necessidade de algo que lhe afastasse as preocupações inúteis que lhe assomavam
o espírito.
- Vais ficar comigo, se não me incomodares. Mas deves ter um nome. .. Qual
será? Já sei: "Paciência". Para te aturar devo ter muita paciência...
Então, aprende: teu nome é "Paciência", ouviste?
E saiu, sorrindo, a cuidar de suas obrigações.
Alguns meses decorreram. Ali Bahadian e "Paciência" haviam-se tornado
muito bons amigos. O rapaz passara a considerar o cão indispensável à sua
existência e não saía sem ele. Certa noite, porém, a tranquilidade de sua vida
foi perturbada pela visita de um ladrão. Despertado, o rapaz viu diante de si
um vulto que o ameaçava:
- Se tens dinheiro, dize-me onde está... Depressa!
Ali Bahadian, sentindo a ponta de uma faca roçar-lhe o tórax, disse a meia voz:
- "Paciência", "Paciência"...
O malfeitor não compreendeu porque ele o fazia e comentou:
- Vamos, vamos! Onde está o dinheiro? Dize-me onde está, antes que eu perca a
paciência!
Nisto, pela porta arrombada entrou o cão, que, notando a presença dum estranho,
rosnou e invadiu a casa. Percebendo que a atenção do intruso se desviara, Ali
com ele se atracou, lutando bravamente na escuridão. A esse tempo, já o cão
atacara o malfeitor, mordendo lhe as pernas. Para desvencilhar-se de Ali, o
desconhecido feriu-o e correu para a porta. "Paciência", no
entanto, se tornara feroz na peleja. Depois de grande alarido, o ladrão logrou
fugir, fazendo-se pesado silêncio nas trevas. A um canto, Ali Bahadian tentava
reerguer-se para acender a velha lâmpada de óleo. Chamou o cão, mas este não
respondeu. Talvez houvesse saído atrás do assaltante e permanecesse lá fora.
Com dificuldade, Ali pôs fogo à lâmpada e o quarto se alumiou. Nesse instante
viu caído, numa poça de sangue, o bravo e infeliz "Paciência". As
lágrimas lhe vieram aos olhos. Aflito, o rapaz pôs sobre as pernas o corpo
inanimado do animal, que mostrava a garganta aberta por certeiro golpe de faca.
- "Paciência"! "Paciência"! Meu amigo! ...
E se entregou a sincero pranto. De nada adiantava o desespero, pois o cão
estava irremediavelmente perdido. Foi nesse momento que "a voz", há
tanto tempo ausente, se fez ouvir novamente:
- Não chores, Ali, embora, pelas lágrimas que derramas, estejas demonstrando a
dor que te alanceia a alma. Reage para que possas dar aos despojos do teu cão o
agasalho sagrado no seio da terra. Saibas que "Paciência" não foi
aniquilado, como supões. Posso mostrar-te que isso é verdade. Está aqui a meu
lado, mais vivo do que pensas, porque a morte não é o fim de tudo, não é o
aniquilamento, mas a libertação de uma vida para o recomeço de outra, em plano
diferente.
Ali Bahadian viu, então, que "a voz" se tornava visível e não
escondeu sua surpresa ao ver que "Paciência", cujo corpo permanecia
inerte a seu lado, saltitava, alegre, na companhia do Espírito. "Como
poderia ser isso?" - indagou, de si para consigo, o rapaz, sem atinar com a
explicação. "A voz" apreendeu lhe a dúvida e tranquilizou-o:
- Ainda é cedo, Ali Bahadian, para penetrares certos mistérios da existência
terrena. Posso adiantar-te que, além da vida física, há outra, extraterrena,
espiritual, em que as criaturas se situam, consoante sua hierarquia moral. Os
animais são também, de certo modo, dotados de uma "alma", inferior à
dos homens, pois não se valoriza pelo livre arbítrio. Depois da morte física, a
"alma" dos animais conserva a sua individualidade e a vida
inteligente lhe permanece em estado latente. Sobrevivem, como no caso de
"Paciência", à morte do corpo material usado na Terra, e se demoram
na erraticidade até que se lhes ofereça nova encarnação. Com o auxílio de Alá,
pude conseguir que visses o que estás vendo, a fim de mostrar-te um aspecto da
verdade e consolar-te da dor de haver perdido o companheiro. Ainda hás de
aprender todas estas coisas e muitas mais que ora nem imaginas. Para isso,
terás de retemperar teu espírito nas boas obras e na prece sincera. Posso
adiantar--te, já, que "Paciência" continua vivo, muito embora tenhas
entre as mãos o corpo inanimado que ele usou. Mas evoluirá através dos tempos,
porque também está sujeito à lei progressiva a que estão subordinados todos os
animais.
O semblante de Ali Bahadian se desanuviou por instantes. Fez peculiaríssimo
sinal, que "Paciência" compreendia como ordem para dar cabriolas, e
foi com regozijo que verificou ser imediatamente atendido. Radiante de alegria,
tentou tomar nos braços o amigo querido, mas nada encontrou, senão o vácuo...
Restava-lhe, porém, a lembrança macabra daquele cadáver ainda morno, do cão
amado que morrera para que ele sobrevivesse...
Vamos reencontrar Ali Bahadian grisalho, mas ainda forte de corpo e espírito.
Fizera-se um símbolo de tolerância, boa-vontade e dedicação ao próximo.
Conhecia muitos dos segredos que lhe haviam sido revelados pela
"voz". Todas as noites, quando o silêncio amortalhava Katarucha, Ali
promovia o intercâmbio de ideias e pensamentos com respeitáveis entidades do
mundo espiritual. Evolvera bastante e daquele jovem estouvado de outros tempos
nada mais restava. Aos discípulos mais íntimos, ensinava que "nascer,
morrer, renascer ainda e progredir continuamente, tal é a lei".
Numa linda manhã de sol, Ali Bahadían ergueu--se do alquicer (6) e
viu diante de si o inesquecido "Paciência". Correu para ele, pegou-o
ao colo, afagou-o e deixou aquela casa para sempre... Quando os discípulos
chegaram, bateram em vão à porta e, ao entrarem, compreenderam que de Ali
Bahadian restavam somente velhos despojos de uma encarnação bem aproveitada...
(1) fêz : espécie de
barrete.
(2) djim: espírito bom
ou mal, superior ao homem e inferior ao anjo, segundo os muçulmanos.
(3) dervixe :
monge muçulmano
(4) nome pelo qual os
árabes denominam Jesus cristo.
(5) zafar qarib: triunfo
próximo.
(6) alquicer : vestidura
árabe a maneira de capa.
Texto retirado do site:
http://www.sistemas.febnet.org.br/acervo/revistas/1955/WebSearch/page.php?pagina=128
Bibliografia:
°
José
Brígido. Reformador (FEB) Junho, 1955.
° Paciência e Vida.
Emmanuel; Francisco Xavier.
° http://www.revistauniversomaconico.com.br/espiritualidade/paciencia-um-culto-maconico/