domingo, 12 de julho de 2015

Boa-vontade e paciência, virtudes maçônicas.

A paciência, segundo a revista Universo Maçônico, significa equilíbrio e o controle do dualismo, o freio para o instinto, o fruto da meditação, o caminho da sabedoria. A paciência conduz à perseverança, e esta à conquista do alvo planejado. 
Com a paciência e a boa-vontade, evoluímos mais rapidamente. Necessário estudar a paciência para observar cada um de nós à frente da própria conduta nas relações humanas e no reduto doméstico.
Sabemos compreender habitualmente os assaltos morais de inimigos ocultos, obrigando-nos a refletir, quanto à melhor forma de auxilia-los para que se renovem construtivamente em seus pontos de vista, e, em muitos casos, esbravejamos contra o desagrado de uma criança que a doença incomoda.

Aprendemos a suportar, com serenidade e entendimento, prejuízos enormes da parte dos amigos, nos quais depositávamos confiança e carinho, buscando encontrar o modo mais seguro de ajudá-los para o resgate preciso, e, muitas vezes, condenamos asperamente pequenas despesas naturais de entes queridos, credores insofismáveis de nosso reconhecimento e ternura.

A tolerância para com superiores e subalternos, colegas e associados, familiares e amigos íntimos é realmente o recurso da vida em que se nos erige o metro do burilamento moral. Isso porque a beneficência se mostre sempre sublime e respeitável, em todas as suas manifestações e atributos, é sempre muito mais fácil colaborar em campanhas públicas em auxílio da Humanidade ou prestigiar pessoas com as quais não estejamos ligados por vínculos de compromisso e obrigação, que tolerar com calma e compreensão os contratempos mínimos e as diminutas humilhações no ambiente individual.

Paciência, por isso mesmo, em sua luminosa autenticidade há de ser aprendida, sentida, sofrida, exercitada e consolidada junto daqueles que nos povoam as áreas do dia-a-dia, se quisermos esculpi-la por realização imorredoura no mundo da própria alma.

Proclamemos e ensinemos quanto nos seja possível os méritos da paciência; no entanto, examinemos as próprias reações da experiência íntima à frente de quantos nos compartilham a luta cotidiana, na condição de sócios da parentela e do trabalho, do ideal e das tarefas de cada dia, e perguntemos com sinceridade a nós próprios se estamos usando de paciência para com eles e para com todos os outros companheiros da Humanidade, assim como estamos sendo incessantemente tolerados e amparados pela paciência de Deus.

Eis uma estória, presente na revista “Reformador”, de 1955. Enfatizando o poder da boa-vontade e paciência.



       O cão de Ali Bahadia

      Ali Bahadian não era propriamente um mau. No entanto, tomava, às vezes, estranhas atitudes, das quais frequentemente se arrependia. Temperamento impulsivo, meio estourado, era, porém, fácil de acomodar, passados os primeiros instantes de irritação.
            Uma noite, ele começou a ouvir vozes. Voltou-se para o lado de onde partiam os sons e nada viu. Pôs-se inquieto e custou a conciliar o sono. Levou alguns dias preocupado, acabando por esquecer o incidente. Quando, dias após, empreendeu pequena viagem, as vozes voltaram. Ia Ali Bahadian batendo o pó da estrada, mais ou menos satisfeito. Amanheceu na aldeia de Banjalir. Acercou-se da margem de pequeno rio para comer alguma coisa. Nesse instante, aproximou-se, agitando a cauda, um cão sujo e faminto, que não tirou os olhos da boca de Ali. Enervado, o rapaz xingou-o, desferindo lhe um pontapé.
            - Que queres, diabo ?! Vai embora!
O pobre animal correu, ganindo, rabo entre pernas, mas não ficou muito longe. A fome era muito mais forte que o medo. De lá onde estava, esticou um olhar triste, misto de ternura e humildade, que não comoveu Ali Bahadian. Mais zangado ainda, este o escorraçou, atirando-lhe uma pedra. Assustado, o cão desapareceu por trás de uns arbustos.
*
            Concluída a frugal refeição, Ali curvou-se sobre o rio para lavar as mãos. Fê-lo tão desastradamente que o fêz (1) escorregou-lhe da cabeça e tombou dentro d’água. Ali Bahadian lembrou-se do cachorro. Assobiou, chamando-o, e quando ele apareceu instigou-o a correr para o rio. O animal, entretanto, reconhecendo-o, fugiu, ligeiro, receando, talvez, castigo.
           - Peste! - vociferou Bahadian. -. Vem cá, animal! Por tua causa vou perder meu fêz!
            Nesse instante, teve a impressão de que alguém lhe mussitava ao ouvido:
            - A culpa é tua e não dele, Ali. Se houvesses demonstrado generosidade, o cão estaria a teu lado, confiante, e certamente atenderia sem relutância à tua vontade. Em vez de ajudá-lo, escorraçaste-o. Agora estás recebendo o prêmio da tua má ação, porque não pode colher flores quem semeia pedras.
 Ali Bahadian, não vendo ninguém em seu redor, estremeceu, espantado. Eram as vozes que retornavam! Sentiu percorrer lhe o corpo um arrepio gelado e disse consigo mesmo:
            - Estou ouvindo "coisas"... Sempre a mesma lengalenga. Eu não acredito nisso...
            No mesmo instante, como se estivesse dialogando com um ser invisível, ouviu ainda mais nitidamente:
            - Acreditas, sim... Irás acreditar, porque ninguém pode fugir à realidade... Verás ainda...
            Alarmado, Ali conseguiu uma vara e "pescou” o fêz que o rio já ia levando. A "pescaria" fora difícil, mas, afinal, ele podia, agora, recomeçar a viagem. O Sol queimava a terra e tornava intolerável o calor. Suado e cansado, Ali Bahadian estava com insuportável mau humor. De quando em quando soltava uma imprecação, amaldiçoando o pobre cachorro. Após uma curva, avistou um homem que tentava erguer até à lombada dum burro pesado fardo que se desprendera das cordas. A tarefa era demasiada para uma só pessoa. Por isto, quando ele viu Ali, sorriu de contentamento, cheio de esperança:
            - Amigo: foi Alá quem te enviou a mim! Alá esteja contigo! Queres dar-me uma "mãozinha? A carga é pesada e sozinho não consigo repo-la em cima do burro...
            - Ah! Quisera eu ter forças para ajudar-te. Não posso, porém. Estou fatigado e tenho ainda que andar muito...
            - Mas, com um pouco de boa vontade, meu amigo, será possível, sem que te prejudiques, levantar o fardo. Eu farei mais força e tu apenas darás um empurrão para a carga subir...
            - Não! Se soubesses como estou cansado, não insistirias...
            E foi andando, ainda mais zangado.
            Enxugando o suor que corria sem cessar do rosto queimado pelo Sol, o desconhecido apenas disse:
            - Compreendo, compreendo... Não podes...  Está bem. Alá há de me dar forças para fazer o que almejo, já que me negas o auxílio que poderias prestar-me, se tivesses boa vontade.
            Ali Bahadian não deu atenção, resmungando:
            - Ora, ora! Quase perdi meu fêz, cansei-me deste jeito e ainda vem esse homem falar em boa vontade! Terei cara de idiota, porventura?
            Andou por todo o resto da tarde. Ao anoitecer, recostou-se a uma grande pedra, debaixo de copada árvore e adormeceu, despertando quando o Sol já fazia sentir os seus efeitos. Abriu o alforje que trazia às costas e pôs-se a comer figos secos. Ao ouvir alguém cantarolar, levantou a cabeça e avistou o homem do burro. Esforçando-se por ser amável,
Ali Bahadian saudou-o:

          - Benvindo sejas, em nome de Alá!
          - E tu também, meu amigo, ganha as bênçãos do Todo Poderoso, porque sem Ele nada valemos - respondeu o desconhecido.
            - Tenho aqui algumas moedas - tornou Ali e serão tuas se me permitires viajar nesse burro.
            Não aguento caminhar nesta dura estrada, sob sol tão forte.
            - Alá te ilumine o pensamento, irmão! A única moeda que realmente tem curso em nossa vida é a boa-vontade. Poderás vir, mas não me precisas pagar nada.
            Perplexo com a generosidade do desconhecido, Ali Bahadian se agastou:
            - Pensas que estou aqui para te pedir favores? Vai embora com teu burro. Falas em boa-vontade, porém o que queres é humilhar-me. Não preciso de boa-vontade, ouviste?
            - Precisas mais do que pensas, Ali. Boa-vontade é moeda que rende muito, dá sempre troco, garante juros certos...
            A voz partia do lado oposto. Ali Bahadian voltou a cabeça, surpreso, e não viu vivalma. Não sabia explicar o que com ele acontecia. O homem e o burro já haviam sumido na estrada cheia de voltas. Assustado, Ali pôs-se a andar apressadamente, monologando:
            - Será um djim (2) me está perseguindo?         
            No mesmo instante, a voz se manifestou, forte:
            - Acompanho-te porque gosto de ti, Não és mau, embora gostes de parecer que o és. Precisas criar juízo, rapaz. Amabilidade não faz mal a quem a usa. Generosidade é ponte que nos faz atravessar muitos valões perigosos. Cultiva a boa-vontade. Sempre que puderes, ajuda a alguém, mesmo que ninguém te ajude. Acabarás por ter amigos e, quem tem amigos, nunca está só, Ali. Faze uma experiência na primeira oportunidade que tiveres. Tenta...
            Outra vez "a voz", aquela voz que lhe penetrava o íntimo. Nervoso, Ali Bahadian perdeu a noção das coisas e saiu correndo, sem sentir a fadiga, porque o temor era maior do que o cansaço. Quando deu acordo de si, estava novamente ao lado do homem do burro. Ofegante, pálido, quase sem poder falar, Ali se apoiou no animal, que caminhava a passo lento. Nesse instante, as cordas que amarravam o fardo às costas do solípede rebentaram de novo e a carga veio estrepitosamente ao chão. O pobre homem ficou desapontado. Como iria transportá-la, se não tinha cordas sobressalentes, que lhe permitissem prender o fardo ao animal?
            Ali Bahadian lembrou-se, então, do conselho de "a voz" e, mostrando-se solícito, ofereceu:
            - Olha: tenho comigo uma corda fina, de cânhamo. É forte e talvez possa servir... Antes que o homem, admirado da bela ação, dissesse algo, Ali Bahadian emendou as pontas rebentadas, experimentando se as emendas estavam seguras. Depois, ajudado pelo companheiro, pôs novamente a carga na lombada do burro. Os dois sorriram de satisfação, depois disto. Recomeçada a marcha, Ali se entregou a animada conversa, talvez receoso de ficar só e ser assediado pela "voz". Em dado momento, o homem lhe propôs:
            - Vieste a mim pela mão do Profeta, amigo.
            Se não viesses, eu ainda estaria parado na estrada, nesta soalheira terrível. Alá te cubra de flores, irmão, por tão boa-vontade!
            Estremeceu Ali Bahadian ao ouvir falar em "boa-vontade". Lembrou-se imediatamente da voz. Nem respondeu ao companheiro, tão atarantado ficou. Sem lhe apreender a perturbação, o homem prosseguiu:
            - Sou Aziz Abud Sizza, de AI-Farid, para onde vou. E tu?
            - Eu? Ali Bahadian, de Katarucha. Também vou para AI-Farid... - esclareceu Ali.
E puseram-se os dois a conversar animadamente.
            - Para que não te canses muito, Ali, monta no burro até à próxima pousada. Bem o mereces por tua boa vontade.
            Ali Bahadian exultava de íntima alegria. Nunca se vira tão bem tratado, nunca sentira alguém demonstrar satisfação em o ter por companhia. Era como se houvesse alcançado o Paraíso. Não esperou que Aziz Abud Sizza repetisse a invitação. Ajeitou-se diante do fardo e lá se foram os três, estrada afora, como velhos amigos. O burro parecia igualmente feliz, porque, enquanto caminhava, movimentava a cauda de um para outro lado.
            Ali bendizia a bondade de Deus:
            - Abençoado seja Teu nome, Alá! Nunca pensei que alguém pudesse ajudar-me! - pensou.
            - Não te dizia eu, Ali? - sussurrou-lhe a voz misteriosa. - Cultiva a boa-vontade, a tolerância, a amizade com os teus semelhantes, procura ser bom, evita ser mau. Acabarás por ter amigos e quem tem amigos, nunca está só. Tiveste o prêmio da tua boa ação.
            Embora empalidecendo, Ali Bahadian não denotou seu sobressalto. Tinha o coração aos pulos, mas, desta vez, sentira indefinível bem-estar. Então, a voz seria mesmo verdade? Não havia dúvida alguma, tanto que lhe predissera bons momentos e ele estava fruindo realmente uma situação que não previra.

            Em AI-Farid, onde pernoitava, Ali Bahadian despertou em sobressalto. Ouvira insólito ruído junto à porta da alcova. Abriu os olhos, atento, mas tudo eram trevas. Lepidamente, ergueu-se e acendeu a lâmpada de óleo. Nada viu de anormal. Supôs haver sonhado. Ia deitar-se de novo quando a chama da lâmpada começou a minguar, até desaparecer totalmente. Ali reergueu-se, tornou a acender a lâmpada, que tinha óleo suficiente para toda a noite. Não queria ficar às escuras... Deitou-se outra vez. Repetiu-se a cena: a chama foi diminuindo devagarinho até sumir. Desta vez, entretanto quarto não ficou na escuridão, porque, imediatamente, se iluminou por igual, como se o Sol lá houvesse nascido. Ali Bahadian sentou-se no leito, apavorado. Que seria aquilo? Através da porta fechada começou, então, a surgir uma luz azulada e de dentro dela saiu um homem alto, moreno, de turbante amarelo. Seus olhos negros e vivos denotavam aguda inteligência. Parecia um dervixe. (3) Aproximando o rosto da face de Ali, indagou:
 - Sabes quem sou?
Tartamudeando, o rapaz respondeu:
            - Não... não sei...
            - Sou "a voz". .. A voz que tens ouvido frequentemente. Depois da boa ação que praticaste, resolvi apresentar-me a ti. Não te assustes. Sou teu amigo, há muito, muito tempo... se andares direito, continuarei a sê-lo. Se entortares, o resto será contigo.
            Ali Bahadian suava frio e tremia como caniços em vendaval. Supunha estar sendo dominado por terrível pesadelo. Mas, nada disto: achava-se até bem desperto. Pretendeu gritar, mas não pôde. Olhos arregalados, sossegou um pouco quando compreendeu que "a voz" lhe sorria com amabilidade, despedindo-se. Depois que a estranha visão desapareceu, Ali Bahadian se colou à parede, certo de que iria morrer de susto. O coração batia descompassadamente e o ar lhe faltava. Porém, nada lhe sucedeu de ruim. "A voz", agora num tom quase paternal, lhe disse:
            - Se todos os homens fossem um pouco mais pacientes, se soubessem ter tolerância em face de certas atitudes de seus semelhantes, se não se mostrassem irritados, mas serenos, muita coisa que parece difícil se tornaria fácil e estabeleceria a compreensão que falta na vida de relação. Um dia, Ali, desceu à Terra um grande Espírito. Isa (4) veio dar aos homens as regras do bom viver e da felicidade. Todos os seus mandamentos podem ser resumidos num só: "Fazei aos homens tudo o que queirais que eles vos façam." Se as criaturas humanas se dispusessem a proceder assim, as condições desse mundo seriam melhores. Tu tiveste um exemplo, Ali. Bastou que ajudasses aquele desconhecido na estrada para que ele também te ajudasse. A vida tem de ser vivida com espírito de reciprocidade e paciência. Nada somos isoladamente, mas valemos muito, quando unidos pela compreensão. Tudo deve ser feito com boa-vontade, porque tudo merece nossa simpatia, nosso amor: as criaturas humanas, os animais, as pedras, as plantas, a terra, a água, o ar, tudo, enfim, Ali Bahadian, porque é criação de Alá. Em certas ocasiões, devemos até abençoar o mal, porque ele nos esclarece a jornada. Sem paciência e boa-vontade pouco se consegue na vida. O homem que compreende as lições do Livro Sagrado, faz a vontade do Profeta e se aproxima de Alá.

            Ali Bahadian ouvia as palavras da visão, sem se mexer. Mesmo que desejasse falar, não teria ânimo, porque sofrera rude abalo. Entrementes, "a voz" prosseguiu:
            - Ser bom é obrigação de todos os filhos de Alá. A bondade não tem fórmulas nem formas; pode ser demonstrada de muitas maneiras e em qualquer ocasião. Ninguém vence com violência e aqueles que aparentam triunfos assim são verdadeiramente derrotados, porque ele mesmo escreve no livro da vida o seu próprio destino. É sempre inteligente ceder um pouco, todas as vezes que se fizer necessário. Sem boa-vontade e esperança de um lado, será difícil encontrar boa-vontade e esperança do outro. Simpatia é um passe livre para a boa compreensão. Mesmo que não te compreendam, guarda a serenidade nos momentos difíceis. Com paciência e tolerância acabarás vencendo, assim como a água, gota a gota, acaba por perfurar o granito mais consistente. A questão está em saber ter paciência e trabalhar, esperando. É preferível que te desapontes procurando ser bom e útil a teus semelhantes, do que desapontares a alguém, mostrando-te duro e imprestável. Todos nós apenas colhemos na medida do que semearmos. Portanto, Ali Bahadian, tem juízo. Educa-te, porque a glória maior do homem não está na riqueza nem nas posições que ocupa, mas na força interior que possui, na capacidade de dominar-se a si mesmo.

            Em seguida, a visão, tocando com a ponta dos dedos a testa, os lábios e o coração, se despediu sorrindo. Atravessou a porta fechada, ante os olhos atônitos de Ali, que se viu, imediatamente imerso em completa escuridão. Reanimando-se, saltou do leito, acendeu a lâmpada de óleo, inquieto por se encontrar sozinho.
            - Só pode ter sido um pesadelo! - exclamou.
            - Vou lá acreditar em fantasma? Eu? Só se eu não me chamasse Ali Bahadian. Sou inteligente. Fui vítima de uma alucinação, apenas. E só acreditarei "nisso" se tudo se repetir...
            Mas nada se repetiu. Pelo menos naquela noite.



            No dia imediato, depois de haver satisfeito os deveres que o haviam levado a Al-Farid, Bahadian iniciou a viagem de retorno a Katarucha. Conseguira lugar numa carreta, até a metade do caminho. Ao atingir a aldeia onde escorraçara o cão, procurou a margem do rio, a fim de fazer ligeiro repasto. Lá encontrou, esquelético, rondando os poucos transeuntes, na esperança de ganhar restos de alimentos, o mesmíssimo cão sujo e infeliz. Ao ver o rapaz, para ele se dirigiu. O primeiro impulso de Ali foi afugentá-lo, porém, no instante se lembrou da visão e das vozes, na quais ele "não acreditava"... Tirou um pedaço defumada carne do alforje e lançou-o ao cachorro, que inesperadamente vivo e rápido, devorou-o sem tardança, para, a seguir, olhar para Ali, entre agradecido e pedinchão.

            - Queres mais, hem? Fiz-te a vontade e não estás satisfeito?
            Como se compreendesse o que ouvia, o cão pôs as orelhas em pé e abanou a cauda. Ali achou graça. Retirou do alforje um bolinho de farinha e entregou-o ao animal, que se acercara mais confiante. Depois, alimentou-se e empreendeu a jornada sem dar maior importância ao cachorro. Andou muito sendo surpreendido por forte ventania, ao cair da tarde. Em dado instante, um golpe de vento arrebatou-lhe o fêz, que caiu numa grota de acesso. Ali Bahadian tentou apanhá-lo, infrutiferamente.  Irritado, dando o fêz por perdido, pôs o alforje às costas e foi procurar abrigo conveniente. Nesse ínterim, ouviu latidos. Voltou-se e avistou o cão faminto que o acompanhara. Corria para ele trazendo à boca o fêz. De momento a momento, como que brincando, punha o fêz no chão, latia e corria em volta desse barrete. Ali, contente, apanhou o fêz e alisou o pelo imundo do humilde cão, que se arriscara para o servir. Deu-lhe o resto de carne defumada que trazia, afagando lhe um vez mais o lombo ossudo. Depois desse incidente, Ali Bahadian recomeçou a viagem, chegando em Katarucha já noite densa. Nem mais se lembrava do cão. Abriu a porta de casa, entrou, e, antes acendesse a lâmpada, tudo se iluminou, tal sucedera em AI-Farid. Ali correu para um canto do quarto, fechando os olhos. A visão se lhe apresentou mais uma vez:

            - Não te espantes, Ali. Já sabes que sou amigo. Aprendeste muita coisa. Olho para o teu futuro e vejo... zafar qarib. (5) Precisas continuar sim, melhorando sempre. Por mais zangado que estejas, por mais pressa que te aflijas, não te irrites, não maltrates ninguém, muito menos os animais. Paciência, tolerância e boa-vontade, Ali Bahadian, três gigantes que nos decuplicam as forças, quando sabemos usá-las. Boa vontade é moeda de câmbio forte, de juros certos. Ajuda sempre que puderes, não esperando recompensa. Quando não deres ajuda, dirige uma prece a Alá, porque ele te dará forças para suportares resignadamente as dificuldades. Conforma-te com as injustiças, mas procura nunca ser injusto, porque, assim, os espinhos sairão de teu caminho. Agora, vai lá fora: há uma surpresa para ti. Recebe-a com paciência e boa-vontade, Ali Bahadian.
             Mal a visão se diluiu através da parede, Ali correu a acender a lâmpada e tornou à porta para ver a que se referia o fantasma. Qual não foi seu espanto ao deparar com o cão, que o seguira humildemente e se deitara ao relento.
            - Era isto! - exclamou, um tanto decepcionado.  - Que vou fazer com este cachorro aqui?!
            Quis enxotar o pobre animal, mas seu subconsciente reagiu imediatamente. Ali Bahadian volveu ao interior da casa e deitou-se, pensando como livrar-se da companhia que lhe parecia incômoda. Ao despertar, na manhã seguinte, porém, era bem diversa sua disposição de espírito. Ao vê-lo, o cão manifestou-lhe agrado e Ali, bem humorado, decidiu:
            - Só poderás ficar comigo se tomares um banho.
            Foi o que fez. Depois da limpeza, o cachorro lhe parecia bonito, embora muito maltratado pela fome. Ali Bahadian alimentou-o e, depois disto, o cão, dócil e atento, distraiu-o bastante. Chegara ele a conclusão de que, afinal, tinha necessidade de algo que lhe afastasse as preocupações inúteis que lhe assomavam o espírito.        
            - Vais ficar comigo, se não me incomodares. Mas deves ter um nome. .. Qual será? Já sei: "Paciência". Para te aturar devo ter muita paciência... Então, aprende: teu nome é "Paciência", ouviste?
            E saiu, sorrindo, a cuidar de suas obrigações.

            Alguns meses decorreram. Ali Bahadian e "Paciência" haviam-se tornado muito bons amigos. O rapaz passara a considerar o cão indispensável à sua existência e não saía sem ele. Certa noite, porém, a tranquilidade de sua vida foi perturbada pela visita de um ladrão. Despertado, o rapaz viu diante de si um vulto que o ameaçava:
            - Se tens dinheiro, dize-me onde está... Depressa!
            Ali Bahadian, sentindo a ponta de uma faca roçar-lhe o tórax, disse a meia voz:
            - "Paciência", "Paciência"...
            O malfeitor não compreendeu porque ele o fazia e comentou:

            - Vamos, vamos! Onde está o dinheiro? Dize-me onde está, antes que eu perca a paciência!
            Nisto, pela porta arrombada entrou o cão, que, notando a presença dum estranho, rosnou e invadiu a casa. Percebendo que a atenção do intruso se desviara, Ali com ele se atracou, lutando bravamente na escuridão. A esse tempo, já o cão atacara o malfeitor, mordendo lhe as pernas. Para desvencilhar-se de Ali, o desconhecido feriu-o e correu para a porta. "Paciência", no entanto, se tornara feroz na peleja. Depois de grande alarido, o ladrão logrou fugir, fazendo-se pesado silêncio nas trevas. A um canto, Ali Bahadian tentava reerguer-se para acender a velha lâmpada de óleo. Chamou o cão, mas este não respondeu. Talvez houvesse saído atrás do assaltante e permanecesse lá fora. Com dificuldade, Ali pôs fogo à lâmpada e o quarto se alumiou. Nesse instante viu caído, numa poça de sangue, o bravo e infeliz "Paciência". As lágrimas lhe vieram aos olhos. Aflito, o rapaz pôs sobre as pernas o corpo inanimado do animal, que mostrava a garganta aberta por certeiro golpe de faca.
            - "Paciência"! "Paciência"! Meu amigo! ...
            E se entregou a sincero pranto. De nada adiantava o desespero, pois o cão estava irremediavelmente perdido. Foi nesse momento que "a voz", há tanto tempo ausente, se fez ouvir novamente:
            - Não chores, Ali, embora, pelas lágrimas que derramas, estejas demonstrando a dor que te alanceia a alma. Reage para que possas dar aos despojos do teu cão o agasalho sagrado no seio da terra. Saibas que "Paciência" não foi aniquilado, como supões. Posso mostrar-te que isso é verdade. Está aqui a meu lado, mais vivo do que pensas, porque a morte não é o fim de tudo, não é o aniquilamento, mas a libertação de uma vida para o recomeço de outra, em plano diferente.
            Ali Bahadian viu, então, que "a voz" se tornava visível e não escondeu sua surpresa ao ver que "Paciência", cujo corpo permanecia inerte a seu lado, saltitava, alegre, na companhia do Espírito. "Como poderia ser isso?" - indagou, de si para consigo, o rapaz, sem atinar com a explicação. "A voz" apreendeu lhe a dúvida e tranquilizou-o:
            - Ainda é cedo, Ali Bahadian, para penetrares certos mistérios da existência terrena. Posso adiantar-te que, além da vida física, há outra, extraterrena, espiritual, em que as criaturas se situam, consoante sua hierarquia moral. Os animais são também, de certo modo, dotados de uma "alma", inferior à dos homens, pois não se valoriza pelo livre arbítrio. Depois da morte física, a "alma" dos animais conserva a sua individualidade e a vida inteligente lhe permanece em estado latente. Sobrevivem, como no caso de "Paciência", à morte do corpo material usado na Terra, e se demoram na erraticidade até que se lhes ofereça nova encarnação. Com o auxílio de Alá, pude conseguir que visses o que estás vendo, a fim de mostrar-te um aspecto da verdade e consolar-te da dor de haver perdido o companheiro. Ainda hás de aprender todas estas coisas e muitas mais que ora nem imaginas. Para isso, terás de retemperar teu espírito nas boas obras e na prece sincera. Posso adiantar--te, já, que "Paciência" continua vivo, muito embora tenhas entre as mãos o corpo inanimado que ele usou. Mas evoluirá através dos tempos, porque também está sujeito à lei progressiva a que estão subordinados todos os animais.
            O semblante de Ali Bahadian se desanuviou por instantes. Fez peculiaríssimo sinal, que "Paciência" compreendia como ordem para dar cabriolas, e foi com regozijo que verificou ser imediatamente atendido. Radiante de alegria, tentou tomar nos braços o amigo querido, mas nada encontrou, senão o vácuo... Restava-lhe, porém, a lembrança macabra daquele cadáver ainda morno, do cão amado que morrera para que ele sobrevivesse...

            Vamos reencontrar Ali Bahadian grisalho, mas ainda forte de corpo e espírito. Fizera-se um símbolo de tolerância, boa-vontade e dedicação ao próximo. Conhecia muitos dos segredos que lhe haviam sido revelados pela "voz". Todas as noites, quando o silêncio amortalhava Katarucha, Ali promovia o intercâmbio de ideias e pensamentos com respeitáveis entidades do mundo espiritual. Evolvera bastante e daquele jovem estouvado de outros tempos nada mais restava. Aos discípulos mais íntimos, ensinava que "nascer, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, tal é a lei".

            Numa linda manhã de sol, Ali Bahadían ergueu--se do alquicer (6) e viu diante de si o inesquecido "Paciência". Correu para ele, pegou-o ao colo, afagou-o e deixou aquela casa para sempre... Quando os discípulos chegaram, bateram em vão à porta e, ao entrarem, compreenderam que de Ali Bahadian restavam somente velhos despojos de uma encarnação bem aproveitada...


(1) fêz : espécie de barrete.
(2) djim: espírito bom ou mal, superior ao homem e inferior ao anjo, segundo os muçulmanos.
 (3) dervixe : monge muçulmano
(4) nome pelo qual os árabes denominam Jesus cristo.
(5) zafar qarib: triunfo próximo.
(6) alquicer : vestidura árabe a maneira de capa.


Texto retirado do site: http://www.sistemas.febnet.org.br/acervo/revistas/1955/WebSearch/page.php?pagina=128

Bibliografia:

° José Brígido. Reformador (FEB) Junho, 1955.
° Paciência e Vida. Emmanuel; Francisco Xavier.
° http://www.revistauniversomaconico.com.br/espiritualidade/paciencia-um-culto-maconico/



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